Um Olhar Actual sobre a “Transformação” do Conde de Lippe
Parte 4
III. A acção imediata
D. José I era o rei de Portugal e tinha como seu Primeiro-ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, a quem concedeu o título de Conde de Oeiras em 1759 (mais tarde, em 1769, concederia o título de Marquês de Pombal). Sem ameaças exteriores e com a necessidade interna de diminuir o poder do exército, o governo de D. José descurou completamente o seu aparelho militar. Como refere Fortunato de Almeida, “o Marquês de Pombal, ou por desafecto às instituições militares, ou porque de todo o absorvia o delírio de aniquilar a nobreza e a Companhia de Jesus, não só deixou o exército no mísero estado em que o encontrou, como até reduziu os quadros existentes em 1735.
Tornou-se tão sensível a penúria, que teve dificuldades em reunir tropas que policiassem Lisboa depois do terramoto”
III.1 Antecedentes
Apesar de, desde 1756, deflagrar uma autêntica guerra mundial – a Guerra dos Sete Anos – Portugal manteve-se neutral. Contudo, um recontro naval entre a esquadra inglesa e a francesa em águas territoriais portuguesas com a consequente derrota francesa e a perseguição aos navios franceses até junto dos fortes da cidade de Lagos, serviu de motivo para reclamações da França e a posterior invasão do território nacional por forças espanholas. A Espanha, que também se tinha mantido neutral, inverteu a sua postura após a subida ao trono do anti-britânico Carlos III o que aconteceu depois da morte de Fernando IV, em 1759. Carlos III facilitou uma aliança franco-espanhola materializada no chamado Pacto de Família, assinado em 15 de Agosto de 1761, entre os diferentes países governados por membros da casa Bourbon, que reinavam em França, Espanha, Nápoles e Parma. D. José I recusou-se a aderir ao pacto em virtude da velha aliança luso-britânica, facto que levou à invasão do reino por tropas espanholas.
Portugal estava em paz desde a guerra de sucessão de Espanha (1701-1714). Como salienta Sales “durante uma paz de quarenta e oito anos o exército português tinha sido esquecido, e a sua força não chegava a vinte mil homens mal armados e pior disciplinados”
A questão da impreparação do exército português não dizia respeito só aos efectivos existentes mas também a uma ausência de postura empreendedora militar dos quadros do exército. Tal como refere Fernando Costa, “embora o rei de Portugal tenha uma força terrestre permanente, cuja dimensão não corresponde entretanto à definida pelas suas ordens, não há uma cultura militar nas elites correspondente ao acompanhamento do pensamento e da acção sobre a guerra europeia. A guerra não é uma preocupação”
Para além de que, como o mesmo autor ainda acrescenta, “com efeito, o reino de Portugal permanece na periferia do sistema militar europeu e a cultura bélica ocupa um lugar formal, sobretudo interno, e com fraca ou mesmo nenhuma comunicação externa” Como sintetiza Martins Barrento, “de facto, não havia guerra há muito, os militares desabituaram-se de suportar as armas, os Generais de suportar a disciplina, o Poder Político de suportar o Exército”
Como toda a política externa de Portugal andava à volta da antiga aliança com a Grã-Bretanha, foi a ela que o Conde de Oeiras solicitou ajuda para a defesa do território e organização do exército.
III.2 A escolha de um estrangeiro
O pedido dirigido ao governo da Grã-Bretanha era explícito na necessidade de um “mestre-de-campo-general” para além de uma vasta quantidade de equipamentos e tropa. A escolha desse general ficou ao critério da coroa britânica. Foi na pessoa de Guilherme Schaumburg-Lippe, conde reinante do pequeno condado Schaumburg-Lippe desde os seus vinte e quatro anos, que recaiu a escolha de Jorge II. O Conde de Lippe tinha nessa altura trinta e oito anos e uma carreira militar de elevada reputação. “As razões para este convite encontram-se tanto nas qualidades profissionais de Lippe como na estima de que ele, quase membro da família real inglesa, gozara na Grã-Bretanha”.
A escolha de um estrangeiro para o lugar cimeiro do exército parecia apresentar, a despeito das diferenças evidentes – língua, cultura, religião –, vantagens tanto para a Grã-Bretanha como para a governo português. “Os ingleses talvez tivessem também desejado entregar o comando em Portugal a uma pessoa de outra nacionalidade e, portanto, considerada mais neutra. O conde, por seu lado, viu primeiro as dificuldades que uma tarefa desta envergadura iria implicar. Em duas cartas, uma dirigida ao primeiro-ministro britânico e outra ao embaixador de Portugal em Londres, especificou as suas dúvidas, a saber, a falta de conhecimento sobre Portugal, sua língua e clima, além de ser completamente desconhecido dos portugueses e de não pertencer à religião católica. Alegou igualmente que não queria ausentar-se por muito tempo do seu país”. Somente Lippe parecia relevar as diferenças.
“O Conde de Lippe, que ostenta o seu título de conde reinante de Schaumburg-Lippe e que verá consagrado o seu tratamento por Alteza, ocupará o lugar cimeiro da hierarquia militar e debate os problemas directamente com o Conde de Oeiras, cuja autoridade se encontra plenamente consolidada após o episódio do real ou suposto atentado contra o rei e a espectacular eliminação física de um conjunto de elementos da primeira nobreza como “conspiradores”. Apesar da eliminação de todas as hipóteses de oposição e da colocação de criaturas nos lugares decisivos da administração, existe latente um sentimento de revolta. A contratação de um estrangeiro para dirigente máximo do exército teria a vantagem suplementar de anular quaisquer veleidades que poderiam emergir da ocupação desse lugar se a ele fosse chamado um indivíduo da Fidalguia de Corte”.
O Conde de Lippe chegou a Lisboa em 2 de Julho de 1762 e fez-se acompanhar de vários oficiais alemães entre os quais o príncipe Carlos Luiz Frederico, Duque de Mecklemburg, marechal de campo no Exército Britânico e irmão da rainha inglesa.
É com um exército português longe do estatuto de uma força armada organizada que o Conde de Lippe, reforçado por tropas estrangeiras, vai ter de defender o território português da invasão espanhola.
III.3 A campanha de 1762
O objectivo da análise da campanha de 1762 não é a descrição, nem sequer a análise das manobras tácticas dos contendores, mas sim, tentar identificar o que constituiu a preocupação imediata do Conde de Lippe para transformar um exército praticamente inexistente numa força minimamente credível capaz de dissuadir as intenções do inimigo e concretizar a efectiva defesa da integridade do reino.
Para um homem experiente no campo de batalha e que acompanhava a evolução dos mais modernos exércitos da época, Lippe concentrou o seu primeiro esforço em disciplinar o exército. Fê-lo quer no campo da moral, tentando acabar com uma das maiores fontes de deserção nas praças e de descontentamento nos oficiais – o pagamento a tempo e horas do pré –, quer no campo material, procurando fardar e equipar convenientemente o pessoal.
Ao mesmo tempo que disciplinava internamente o exército, o Conde de Lippe tratava da concepção e integração de todas as forças disponíveis, nacionais e estrangeiras.
Para isso concentrou as tropas anglo-lusas em vários pontos de que podia dispor: cerca de 15 000 homens nas tropas de linha (sensivelmente de iguais proporções entre portugueses e ingleses), constituindo o exército de manobra e cerca de 20 000 homens, auxiliares e ordenanças, que só podiam ser empregues na guarnição das praças e constituíam o exército de guarnição. Criou o estado maior do exército, com o brigadeiro inglês Crawford, chefe do estado maior, no posto de quartel-mestre-general.
De um plano inicial assente na concentração de tropas em expectativa estratégica de modo a poder lançá-las, com oportunidade, no ponto ou pontos ameaçados, o Marechal reinante, depois de se aperceber da manobra do seu opositor, o Marquês de Sarria, adaptou-o oportunamente para uma ofensiva rápida.
O exército de manobra tinha sido organizado em cinco destacamentos para este plano, sendo com eles que Lippe acabou por manobrar para defesa do reino. As coisas não estavam a correr de feição para as tropas anglo-lusas quando uma ordem de Madrid obrigou à suspensão da ofensiva por imposição de novo comandante. O Conde de Aranda iria substituir o Marquês de Sarria. Esta quebra de ímpeto permitiu ao Conde de Lippe rearticular os seus destacamentos, manobrando-os em reacção ao inimigo.
Ambos os exércitos entraram em quartéis de Inverno e, entretanto, em França, a paz de Fontainebleau punha termo à Guerra dos Sete Anos e fazia suspender as operações entre Portugal e Espanha.
O tratado de paz definitivo que assegurou a restituição recíproca dos prisioneiros de guerra e a devolução a Portugal das praças ainda ocupadas pelo inimigo (Chaves e Almeida), só foi assinado em 10 de Fevereiro de 1763, sendo publicado em Lisboa no dia 25 do mês seguinte.
III.4 A génese de uma transformação necessária
A realidade de uma invasão de tropas espanholas a Portugal não deixou dúvidas ao poder político da necessidade de uma transformação do exército. Eram razões de natureza política e estratégica que se constituíam na fonte imediata para transformar o exército. Mais, a natureza concreta da ameaça não conferia tempo para que essa transformação se operasse senão por emulação, com a particularidade de envolver a importação de novas formas de fazer a guerra, não pela imitação de outras organizações militares, mas pela incorporação de capacidades dessas organizações estrangeiras (através do ingresso de oficiais estrangeiros experientes) na estrutura do exército português.
Como se constatou anteriormente, foi ao nível da componente de “pessoas”, no desenvolvimento da sua moral (pela satisfação das necessidades mínimas: vencimentos), e na componente de “organização”, numa organização estratégica do exército anglo-luso que Lippe iniciou essa transformação.
Este esforço imediato de transformação nas componentes “pessoas” e “organização” está espelhado na opinião de Martins Barrento quando este considera que é a dois níveis que se pode identificar o legado imediato do Conde de Lippe na transformação do exército logo a seguir à campanha de 1762:
– primeiro, “apesar de não se ter visto, em 1762, a batalha vitoriosa que glorificou os grandes capitães, o Marechal General (...) conseguiu a defesa do Reino e a paz que se seguiu”;
– segundo, lançou as sementes para a reconstrução de um novo exército pelas suas “determinações sobre a organização, a acção insistente sobre a instrução e a disciplina”.
Talvez não ponderado no longo prazo pelo Conde de Oeiras, a incorporação de um comandante chefe estrangeiro, acompanhado de um lote de oficiais estrangeiros e de uma força anglo-lusa, na qual 50% dos efectivos eram também estrangeiros, poderia constituir-se, per se, numa fonte de transformação ao provocar um confronto entre normas culturais distintas, não só ao nível das elites militares, mas também ao nível do poder político. Este choque foi por demais evidente porque “logo desde o início da campanha, e durante ela, teve o Conde de Lippe contra si estorvando-lhe a acção, não só a má vontade dos vedores como também a da maioria dos generais e oficiais superiores, fidalgos todos eles mais ou menos aparentados entre si”. A razão para o choque era clara, “o conde era um típico militarischer Aufklärer, um militar das luzes, com poucas semelhanças, em termos de formação intelectual e de atitude militar, com a larga maioria dos oficiais portugueses” Naturalmente, “a acção do conde de Lippe tinha pois de encontrar resistência entre uma oficialidade ainda formada de acordo com valores e conhecimentos que, tanto no domínio cultural como no mais especificamente militar, eram os mais tradicionais”.
Parece ser este aspecto de choque entre normas culturais distintas que se pode deduzir quando Martins Barrento, no artigo já diversas vezes citado, destaca ainda outros dois patamares importantes do legado imediato do Conde de Lippe, a saber, “as influências que produziu nas mentalidades e no poder”.
Ao nível das fontes, verifica-se que foram razões de natureza política e estratégica que confrontaram o poder político para a necessidade de transformação. Após uma campanha de sucesso e a integração de uma estrutura organizacional estranha ao Exército Português, foi o confronto de normas culturais que permitiu dar continuidade ao processo de transformação.
Ao nível da operacionalização, a integração de oficiais de outros exércitos materializou a emulação necessária para a implementação de medidas, essencialmente, nas componentes “pessoas” e “organização”.
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